Decisão STJ: Cláusula de eleição de foro não vale para produção antecipada de provas.

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

Em julgamento recente de recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que, em casos de produção antecipada de prova, o foro do local da coisa que deva ser periciada pode prevalecer sobre aquele eleito em contrato – e até mesmo ao da regra geral, de competência do foro de domicílio da parte requerida. 

No caso, as partes discutiam qual era o foro competente para realização de uma perícia, em produção antecipada de provas, a recair sobre equipamento produzido por uma e adquirido pela outra. O foro eleito em contrato coincidia com o da parte requerida – e a autora da medida cautelar a ajuizou no foro da situação da coisa. 

Em um primeiro momento, a requerida manejou exceção de incompetência, alegando violação ao que dispunha a cláusula contratual de eleição de foro – argumentação que foi rejeitada pelo Tribunal de origem. Interposto o recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, primeiro consignou que, antes do CPC/15, não existia entre as regras processuais dispositivo equivalente ao do art. 381, § 2º, que prevê expressamente a produção antecipada de provas no juízo onde deva se dar sua produção – mas, apenas, a regra geral do art. 800 do CPC revogado, que previa que o foro competente da medida cautelar antecedente era o mesmo da ação principal. 

Mesmo naquela época, o STJ já decidia que, consideradas questões práticas e processuais, a regra do art. 800 do CPC/73 poderia ser mitigada, permitindo-se o ajuizamento da medida cautelar antecedente em juízo diverso de onde deva tramitar a ação principal. Esta controvérsia, hoje, resta parcialmente superada pela inovação legislativa – a qual, como a jurisprudência do STJ, parece privilegiar “maior celeridade à prestação jurisdicional”, como dito no acórdão, consignando-se ainda que “a facilitação da realização da perícia prevalece sobre regra geral do ajuizamento no foro do réu”. 

REsp n. 2136190 – RS (2024/0128374-0)

Anatomia de uma Queda.

Amanda Botelho de Moraes

A escritora Sandra, Samuel e Daniel, filho deles, poderiam ser uma família comum, em meio a problemas de convivência comuns, não fosse a morte inesperada de Samuel, após uma queda do segundo andar da casa onde moram, em um dia perfeitamente comum, em que Daniel, que tem deficiência visual, encontra o pai já sem vida.

Após as investigações iniciais e na impossibilidade de se definir, à margem de dúvidas, se houve um suicídio ou acidente, Sandra é apontada como a principal suspeita da morte do marido.

A partir daí, o drama da família é examinado fria e profundamente no Tribunal do Júri da França que irá definir se Sandra é culpada ou inocente da morte de seu marido, à medida que sua principal testemunha de defesa, isto é, seu filho, também não tem elementos suficientes para garantir a inocência da mãe.

Conforme o trâmite do julgamento avança, é perceptível que ela não está sendo julgada pelo crime e suas circunstâncias, mas sim por ser quem é, isto é, uma mulher que desafia os padrões de conduta aceitos socialmente e pela influência que sua personalidade teve sobre o marido e suas possíveis decisões.

No duelo entre o advogado de defesa que, por sinal, é um ex-namorado de Sandra, e o promotor, não se trata de investigar os fatos, mas sim a figura da acusada, encenando um verdadeiro show no Tribunal Francês.

Marcado pelo melhor diálogo de 2023, em que Sandra diz verdades ao marido, ao mesmo tempo em que as nuances da relação nos levam a perceber que as queixas dele não são infundadas, o filme nos deixa imersos no cotidiano, nas mágoas e nos pontos positivos de uma relação, com todas as suas ambiguidades.

Dirigido por Justine Triet, “Anatomia de uma Queda” escrutina a vida intima de um casal em crise e nos leva à imediata identificação em maior ou menor grau, ao nos fazer questionar sobre o quanto podemos ser culpados por não satisfazer as expectativas sociais. 

Novas regras para cancelamento de Planos de Saúde.

Manuella de Oliveira Moraes

A regulação dos planos de saúde no Brasil é um tema jurídico complexo, pois envolve uma série de direitos fundamentais, como o direito à saúde, à informação e a busca por equilíbrio nas relações contratuais entre consumidores e fornecedores de serviços. 

O judiciário tem sido marcado pelo crescente número de processos envolvendo a inadimplência de beneficiários e o cancelamento unilateral de contratos pelas operadoras.

Nesse contexto, as novas regras da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) surgem como uma tentativa de melhorar a transparência, proteger os direitos dos consumidores e garantir mais estabilidade nas relações contratuais entre beneficiários e operadoras.

Tais alterações estão em vigor desde 1º de dezembro de 2024 e são válidas para todos os contratos de planos de saúde firmados depois de 1º de janeiro de 1999 ou dos planos adaptados à Lei 9.656 de 1998, que são pagos pelos próprios beneficiários.

Além disso, a ANS também concedeu um período de transição para que as operadoras façam a adequação às novas normas até 1º de fevereiro de 2025, a partir de quando poderão sofrer penalidades pelo descumprimento das mesmas.

Confira-se as principais alterações:

  • O usuário poderá ter o seu plano cancelado por inadimplência se deixar de pagar, no mínimo, duas mensalidades, consecutivas ou não, nos últimos 12 meses de vigência do contrato;
  • Os dias em atraso de mensalidades que já foram pagas não são contados como período de inadimplência;
  • Se o beneficiário discordar do valor ou da cobrança referente às mensalidades não pagas, ele poderá fazer um questionamento sobre a notificação por inadimplência realizada pela operadora sem perder o prazo para o pagamento;
  • Se a mensalidade do plano de saúde deixar de ser cobrada por algum erro da operadora, seja por não disponibilizar o boleto para pagamento ou não realizar o desconto em folha ou em débito na conta corrente do beneficiário, o período de inadimplência não será considerado válido para cancelar o contrato. A ANS recomenda que, para comprovar o não recebimento do boleto, o beneficiário apresente à operadora o contracheque, nos casos de desconto em folha; extrato bancário, em casos de débito em conta; ou print da tela do e-mail ou do site da operadora, que mostrem a ausência das cobranças;
  • Formas de comunicação sobre falta de pagamento com os beneficiários:

– Carta, com aviso de recebimento (AR);

– Pessoalmente por um representante da operadora;

– Por ligação telefônica gravada e por meios eletrônicos: e-mail; mensagem de texto para telefones celulares, que poderá ser feita via SMS ou via aplicativo de mensagens como o WhatsApp; 

Essas novas opções de notificação serão válidas desde que o beneficiário confirme o recebimento. 

Portanto, é fundamental que o usuário mantenha seus dados cadastrais atualizados junto à operadora de plano de saúde.

Para a agência reguladora, as atualizações das regras objetivam garantir que o consumidor seja notificado, caso esqueça de pagar a mensalidade, e tenha a oportunidade de quitar a dívida, evitando o cancelamento do contrato ou a sua exclusão do plano de saúde. As mudanças modernizam a regulamentação, trazendo transparência aos beneficiários nos casos de rescisão de contrato por inadimplência”.

Apesar dos avanços, a prática das novas regras não está isenta de desafios. 

A Resolução Normativa nº 593/2023, ao buscar um equilíbrio entre as necessidades dos consumidores e a viabilidade econômica das operadoras, contribui para a evolução do mercado de saúde suplementar, oferecendo maior proteção ao consumidor sem comprometer a sustentabilidade do setor. 

No entanto, a efetividade das mudanças dependerá de sua implementação eficaz, da fiscalização rigorosa pela ANS e da conscientização dos beneficiários sobre seus direitos.

Empregado é condenado por litigância de má-fé por mentir em ação trabalhista.

Ana Paula Araújo Leal Cia

O trabalhador pleiteou, perante a Justiça do Trabalho, o pagamento de horas extras sob a alegação de que batia o ponto, mas permanecia desempenhando suas atividades laborais, ocorre que o geolocalizador do seu aparelho de telefone pode demonstrar que o mesmo não permanecia na empresa após o término de sua jornada de trabalho.

A prova foi produzia diante da controvérsia instalada processualmente. O juiz, então, decidiu pela expedição de ofício à variadas empresas, entre elas: Vivo, Claro, Tim, Google e, também, para a empresa que realizava o transporte dos colaboradores.

Após recepcionada todas as provas foi realizado um confronto entre o controle de jornada do colaborador e os registros de geolocalização fornecidos pelas empresas de telefonia móvel e ficou provado que nos horários alegados na petição inicial, o colaborador estava fora da empresa. 

Para o juiz, Régis Franco e Silva de Carvalho, de Embu das Artes, SP “o reclamante faltou com a verdade, de forma manifesta e dolosa, no anseio de induzir este juízo ao erro e obter vantagem indevida, de modo que resta caracterizado o ato atentatório ao exercício da jurisdição”. Assim, condenou o trabalhador a pagar à União multa de 20% do valor da causa, ressaltando que a penalidade é necessária “para acabar com a ‘lenda’ comumente tão propalada de que se pode mentir em juízo impunemente”.

Ainda, como forma de reprimir a litigância predatória, foi arbitrada multa por litigância de má-fé de 9,99% sobre o valor da causa, além da expedição de ofício para as Polícias Civil e Federal e para os Ministérios Público Estadual e Federal para averiguação de possível ocorrência de crime.

Arrematante não responde por dívida tributária anterior à alienação do imóvel, mesmo com previsão no edital.

João Fernando Bassil Miranda

​O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento sob o rito dos recursos repetitivos, fixou a tese de que, “diante do disposto no artigo 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN), é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação”.

Via de regra, quando alguém compra um imóvel, assume obrigatoriamente a responsabilidade pelos tributos relativos ao bem que não foram pagos. 

No entanto, no caso de compra de imóvel em leilão realizado pela Justiça, é diferente. O STJ definiu que o arrematante do imóvel leiloado judicialmente não é responsável pelo pagamento da dívida tributária deixada pelo antigo dono, ainda que o edital do leilão diga o contrário. O Tribunal entendeu que a lei que exclui essa responsabilidade do arrematante prevalece sobre a previsão do edital.

Segundo o Ministro Teodoro Silva Santos, relator do Recurso Especial nº 1914902 – SP, o CTN estabelece que, em leilões públicos, o valor da venda do imóvel deve ser usado para quitar as dívidas tributárias, isentando o comprador. 

Cabe destacar que apenas os leilões com editais publicados após a decisão do Tribunal estarão sujeitos a essa regra, exceto em casos administrativos ou judiciais ainda em análise, que se beneficiarão imediatamente. 

O Ministro explicou que o CTN, reconhecido como lei complementar pela Constituição de 1988, define que, em vendas comuns, o novo proprietário assume as dívidas tributárias anteriores. Todavia, em leilões judiciais, a dívida é transferida ao valor de arrematação e não ao comprador, que adquire o imóvel sem ônus, devido à origem judicial da aquisição. 

Para garantir o pagamento das dívidas fiscais, o valor depositado pelo comprador em juízo será usado para cobrir os débitos, permitindo que a Fazenda Pública concorra com outros credores. Se o valor não for suficiente, poderá ela cobrar a diferença do antigo proprietário. 

Por fim, o Ministro destacou que a inclusão da responsabilidade no edital não pode se sobrepor ao CTN. Mesmo que o comprador concorde com a previsão de assumir dívidas anteriores, essa condição é inválida, pois o CTN assegura que o comprador de imóvel em leilão judicial receba o bem livre de débitos fiscais passados.

STJ relativiza valor da causa em ações indenizatórias por danos morais para fixação de honorários de sucumbência.

Eduardo Mendes Zwierzikowski

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu os honorários advocatícios de R$ 8,2 milhões para R$ 15 mil em um caso envolvendo o ex-jogador de futebol Romário e a Editora Abril. Romário havia processado a editora por uma matéria na revista Veja, que o associava a uma conta bancária não declarada na Suíça, alegando danos à sua imagem. Ele pediu R$ 75 milhões de indenização, mas o juiz de primeira instância considerou a ação improcedente, baseando a decisão na liberdade de imprensa e fixando os honorários de sucumbência em R$ 15 mil reais, seguindo a regra da equidade.

Em segundo grau, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ/DF) reformou parcialmente a sentença para arbitrar os honorários em 11% (onze por cento) do valor da causa, o que equivaleria a R$ 8,2 milhões. Romário então recorreu ao STJ, que manteve a decisão de primeira instância, restabelecendo os honorários de R$ 15 mil. 

O Relator do caso, Ministro João Otávio de Noronha, justificou a redução com base no princípio da equidade, destacando que o valor da causa era meramente indicativo e não correspondia diretamente ao benefício econômico envolvido. A decisão foi acompanhada pela maioria dos ministros, enquanto o ministro Antonio Carlos Ferreira votou pela manutenção do valor mais alto dos honorários, com base no valor da causa.

O Código de Processo Civil de 2015 estabelece critérios objetivos para a fixação de honorários advocatícios, dispostos no art. 85, que devem ser seguidos, conforme o caso, quando há condenação, o juiz deve fixar os honorários entre 10% e 20% do valor da causa ou do proveito econômico;  quando não há condenação, os honorários devem ser fixados conforme o proveito econômico obtido pelas partes; e, quando o proveito econômico é inestimável ou irrisório, o juiz pode fixar os honorários com base no valor da causa, quando não for possível quantificar o benefício econômico.

A decisão do STJ firma um novo entendimento daquela Corte, no sentido de que, em ações de indenização, especialmente aquelas envolvendo danos morais, o valor atribuído à causa não determina necessariamente o valor da compensação, mas apenas serve como um guia inicial. O valor da causa tem caráter meramente indicativo e serve para determinar a decisão do juiz. Não se pode considerar o valor da causa como o único parâmetro para a fixação dos honorários. A decisão também reforça a flexibilidade dos juízes para fixar honorários com base no critério da equidade, especialmente em casos de danos imateriais de difícil mensuração, como danos à imagem e à honra.

Intermediadores de pagamentos, serviços e negócios: atenção às obrigações perante a SEFA/PR.

Suzanne Dobignies S. Koslowski

Com a recente publicação do Decreto nº 7.812/2024, o Estado do Paraná alterou o Regulamento do ICMS (RICMS/PR), ampliando, dentre outras alterações, para instituições que atuam como intermediadoras de pagamentos, serviços e negócios a obrigatoriedade de entrega da Declaração de Informações de Meios de Pagamentos (DIMP) e da entrega de informações solicitadas pelo fisco em procedimentos fiscalizatórios.

A DIMP, anteriormente exigida apenas das instituições financeiras, agora passa a ser obrigatória também para as que realizam transações intermediadas, incluindo as em meios eletrônicos e ambientes virtuais, como plataformas de delivery, marketplaces e serviços semelhantes, inclusive aquelas cujo pagamento é realizado via Pix.

Além disso, a Secretaria da Fazenda do Paraná modificou o RICMS/PR para estabelecer a responsabilidade solidária pelo ICMS devido em caso de omissão de informações exigidas pelo fisco, impondo essa responsabilidade a agentes que prestam serviços de intermediação comercial em ambientes virtuais por meio de tecnologias de informação, incluindo leilões eletrônicos.

Essa responsabilidade também se aplica a prestadores de serviços de tecnologia da informação que viabilizam transações comerciais em plataformas digitais, especialmente para aqueles que gerenciam e controlam operações e meios de pagamento em ambientes virtuais.

Esse aspecto merece atenção das instituições obrigadas a apresentar a DIMP, pois a não transmissão do arquivo ou das informações solicitadas pela Receita Estadual, na forma e no prazo estipulados pela legislação, pode resultar na responsabilização solidária pelo ICMS devido e não pago pelos respectivos contribuintes, indo além de uma simples infração de obrigação acessória.

As informações deverão ser apresentadas até o último dia do mês subsequente à operação, contendo dados completos das transações realizadas, ainda que não envolvendo contribuintes do ICMS, mas sem indicar os consumidores das mercadorias e dos serviços, conforme o § 2º do artigo 391 do RICMS/PR.

As especificações técnicas para a geração dos arquivos estão disponíveis no Manual de Orientação, acessível no portal do CONFAZ www.confaz.fazenda.gov.br, no menu “manuais” identificado como “Manual de Orientação DIMP”.

Quanto à possível violação do sigilo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ – ERSP 68005) já firmou o entendimento de que o uso de informações financeiras é legal e não viola o sigilo bancário, desde que haja processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em andamento, amparado no artigo 6º da Lei Complementar Federal nº 105/2001. Este dispositivo exige um processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal para o exame de informações fornecidas por administradoras de cartões de crédito.

Também neste quesito, a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar Federal nº 105/2001 foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 601.314. Na ocasião, a Suprema Corte firmou a tese de que “o art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade entre os cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, e estabelece requisitos objetivos, transferindo o dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal.”

Embora o cenário jurisprudencial aborde a violação do sigilo no uso de informações financeiras pelos fiscos, entende-se que sua aplicação pode ser extensiva à entrega de outras informações, tais como as transmitidas pela DIMP.

Dessa forma, a exigência de entrega de informações trazida pelo Decreto nº 7.812/2024 é legal e reflete o esforço do governo estadual para aprimorar a conformidade tributária, cabendo ao fisco utilizar esses dados em processos administrativos fiscais.

O Prolik Advogados está à disposição de seus clientes para oferecer esclarecimentos adicionais e direcionamentos, caso sejam necessários.

STJ: Fraude contra credores permite penhora de bem de família.

Izabel Coelho Matias

A 3ª turma do STJ decidiu, por unanimidade, que imóvel utilizado como residência familiar, alienado por um devedor em situação de insolvência, pode ser penhorado, mesmo sem a formalização do registro da hipoteca.

No caso concreto, os devedores firmaram dois contratos de mútuo, em razão dos quais concederam em garantia dois imóveis, sendo de responsabilidade destes o registro das respectivas hipotecas. Posteriormente, os contratos foram inadimplidos; também não foi dada continuidade ao procedimento de registro das garantias reais. Depois, os referidos imóveis foram alienados a um terceiro, o qual tinha ciência de seu estado de insolvência do alienante. 

Nesse caso, os devedores alegaram que não haveria fraude contra credores, uma vez que o registro da hipoteca não havia sido realizado. Argumentaram, ainda, que um dos imóveis permaneceu como residência familiar, mesmo após a alienação. 

A Ministra Relatora, Nancy Andrighi, afirmou que a ausência de registro da hipoteca na matricula do imóvel não obsta a configuração de fraude contra credores, quando comprovado que o terceiro adquirente tinha ciência do estado de insolvência do devedor. 

Quanto ao bem de família, a Ministra considerou que o imóvel dado em garantia era, de fato, destinado à habitação dos devedores, já que o bem foi alienado para um amigo íntimo da família, o que permitiu que os devedores continuassem morando no imóvel. Entretanto, o bem não estava protegido pela impenhorabilidade prevista para o bem de família, pois se enquadrava na exceção do art. 3, v, da Lei 8.009/90, que trata da execução de hipoteca sobre imóvel oferecido como garantia:

“a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.

Dessa forma, entendeu a Relatora que o fato de os devedores não terem averbado a hipoteca, intencionalmente, não afastaria a aplicabilidade do mencionado artigo terceiro, pois, “não se pode admitir que eles se beneficiem de sua própria torpeza, notadamente após terem confessado que agiram dolosamente ao não efetuar o registro da hipoteca”.

Por fim, o fato de o imóvel ter continuado a servir como moradia familiar não garantiu sua impenhorabilidade, haja vista a jurisprudência da corte no combate à fraude contra credores, mesmo quando há envolvimento de bem de família.

TST afasta desconsideração da personalidade jurídica em S/A de capital fechado.

Isadora Boroni Valério Simonetti

Em recente decisão (RR-10248-75.2018.5.03.0134) o Tribunal Superior do Trabalho (TST) afastou a desconsideração da personalidade jurídica de sociedade anônima de capital fechado e a responsabilização pessoal dos acionistas pelo pagamento de dívidas trabalhistas da empresa. A decisão é relevante, especialmente no âmbito do TST, porque diverge da habitual tendência da justiça do trabalho de fazer recair sobre os sócios, seja de sociedades limitadas, como de sociedades anônimas de capital fechado, a responsabilidade pela quitação, com patrimônio pessoal, de débitos trabalhistas, ignorando a distinção característica entre os bens da sociedade e os bens dos sócios.

No caso concreto, o Hospital Santa Catarina S.A., sociedade anônima de capital fechado sediada em Uberlândia (MG), foi condenado em reclamatória trabalhista movida por uma técnica de enfermagem e, diante do não pagamento dos valores devidos pela empresa, o juiz do trabalho acatou o incidente dede desconsideração da personalidade jurídica e direcionou a execução para os acionistas da sociedade. Tal medida foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG) sob o argumento de que a sociedade anônima de capital fechado não seria uma autêntica sociedade anônima (caracterizada por ser uma sociedade “de capital”), em razão da falta de negociação de ações em bolsa e da possibilidade de identificar seus acionistas. Isso a tornaria mais similar a uma sociedade limitada, que é comumente conhecida por ser uma sociedade “de pessoas”, ou seja, os sócios e suas relações são o ponto central para a continuidade da sociedade, e não apenas o capital social. 

Contudo, a 1ª Turma do TST reverteu a decisão e afastou a responsabilização dos acionistas da empresa pelos débitos trabalhistas, entendendo que, diferentemente do que foi decidido pelas instâncias inferiores, as sociedades anônimas são sociedades de capital e não “de pessoas”, independentemente do capital ser negociado em bolsa ou não,  de modo que não se pode desconsiderar o disposto na  na lei específica de regência (Lei das S/A), notadamente o que dizem os artigos 1º e 158, os quais preveem, respectivamente, que a responsabilidade dos acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas e que a responsabilização do administrador depende de comprovação de dolo ou culpa, situação não comprovada no caso analisado. 

A advogada Isadora Boroni Valério Simonetti pontua que a decisão do TST foi adequada, no sentido de privilegiar a legislação societária sobre o tema e considerar que o caráter específico da sociedade anônima de capital fechado não comporta a responsabilização dos acionistas por quaisquer débitos da sociedade. Esse posicionamento demonstra a preocupação do judiciário brasileiro, em sede de tribunais superiores, em concretizar a separação patrimonial prevista no regime das sociedades anônimas, bem como acerta em responsabilizar pessoalmente o administrador apenas em casos de comprovada culpa ou dolo nos atos de gestão.

O sol é para todos (1962).

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

“O sol é para todos” (1962) definitivamente não é apenas um grande filme de tribunal. Baseado no romance clássico da literatura norte-americana de mesmo nome (“To Kill a Mockingbird”, no original) escrito por Harper Lee e publicado originalmente em 1960, o longa foi lançado na esteira do grande sucesso do livro – que continua sendo editado ininterruptamente desde seu lançamento.

A trama se passa logo após a grande depressão, e é centrada na família do advogado Atticus Finch, interpretado inesquecivelmente por Gregory Peck. Viúvo, Finch cria os filhos Scout e Jeremy com o auxílio da cozinheira negra Calpurnia, numa imaginária cidade do Alabama chamada Maycomb, uma representação da Monroeville em que cresceu Lee Harper. 

Atticus é advogado e muito bem-quisto por seus concidadãos e vizinhos – até o dia em que aceita ser o defensor dativo de Tom Robinson, um jovem negro acusado de estuprar Mayella Elwell, uma adolescente branca. As tensões raciais que vicejavam no sul dos EUA afloram, com os filhos de Atticus sendo hostilizados pelos colegas de escola e a revolta generalizada dos locais. A instrução do processo, no entanto, não consegue demonstrar a culpa de Robinson, ficando claro que Mayella não foi estuprada, mas espancada por seu pai por demonstrar afeição ao jovem negro. A realidade, no entanto, não consegue influenciar os jurados: mesmo diante da ausência de provas em desfavor do Réu, das evidências de que a vítima mentiu, e da brilhante atuação de Atticus, ele é condenado.

As alegações finais do defensor talvez sejam um dos mais belos libelos de justiça e equidade racial que se possam ver em um filme ambientado em tribunais. A interpretação sóbria de Gregory Peck é muito marcante – ele poderia gritar ou esmurrar a mesa, mas a força do discurso vem de sua convicção moral, coragem e firmeza.

Não se pode dizer que “O sol é para todos” tenha um final feliz. Do resultado injusto das deliberações do júri aos acontecimentos finais, a história deixa um gosto amargo – mas, também, de esperança, na figura especialmente de Scout, a filha mais nova de Atticus, cujas tribulações ao longo da história ecoam o idealismo de seu pai. 

O romance que deu origem ao filme é tido como um dos clássicos modernos da literatura norte-americana, que “todo adulto deveria ler antes de morrer”, conforme uma de suas mais célebres críticas. O mesmo vale para o filme, uma adaptação bastante fiel da comovente história, e um clássico que vai além apenas das salas de julgamento.

A célebre cena das alegações finais: