
Michelle Heloise Akel
Uma questão que costuma ser levantada por auditorias independentes está relacionada ao prazo de utilização de “créditos acumulados” e “saldos credores” apurados e mantidos na escrituração fiscal do ICMS. Muitas entendem que esses créditos, não utilizados e transportados para os períodos seguintes, a teor do art. 23, da Lei Complementar (LC) 87/96, estariam sujeitos à decadência no prazo de cinco anos.
Nesse ponto, desde logo, importa esclarecer que, no âmbito do ICMS, é comum o emprego de expressões como “saldo credor” ou “crédito acumulado”, muitas vezes como sinônimas. Tecnicamente, a expressão “crédito acumulado” é empregada para o saldo positivo na conta-gráfica originário de operações de exportação, enquanto que “saldo credor” se refere ao saldo oriundo de operações ou prestações destinadas ao mercado interno, dentro do país, não consumido por débitos do imposto.
Com efeito, é comum que contribuintes mantenham saldos credores ou créditos acumulados transferidos mensalmente, em volumes significativos e períodos que ultrapassem cinco anos, especialmente estabelecimentos exportadores ou que promovam operações diferidas ou com suspensão. Daí a pertinência da discussão.
Cabe, aqui, uma análise da legislação posta e dos posicionamentos mais recentes sobre o tema pelas próprias administrações estaduais.
O art. 20, da LC 87/96, prevê que “para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação”.
Por sua vez, o art. 23, da mesma lei, aduz que o “direito de crédito, para efeito de compensação com débito do imposto, reconhecido ao estabelecimento que tenha recebido as mercadorias ou para o qual tenham sido prestados os serviços, está condicionado à idoneidade da documentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e condições estabelecidos na legislação”. E, o seu parágrafo único, estabelece que “o direito de utilizar o crédito extingue-se depois de decorridos cinco anos contados da data de emissão do documento.
A partir dessas disposições, poder-se-ia, então, concluir que “créditos acumulados” e “saldos credores” acumulados e transferidos mensalmente, na escrita fiscal do contribuinte, estariam sujeitos à extinção após cinco anos? E, cinco anos contados de qual marco?
Na solução da controvérsia, merecem destaque as expressões “creditar-se” e “utilizar”, dos arts. 20 e 23, parágrafo único da LC 87/96.
Tais expressões podem suscitar dúvidas se estão a se referir à fase de escrituração, ou seja, ao lançamento do crédito na escrita fiscal, para fins de compensação futura, ou se à compensação propriamente dita, quando os créditos são efetivamente deduzidos dos valores lançados a débito.
Inicialmente, vale lembrar que o ICMS é orientado pelo princípio da não-cumulatividade e, salvo ressalva em contrário em hipóteses específicas, pela sistemática de apuração em conta-gráfica, confrontando-se créditos e débitos do período de apuração. Na forma do art. 24, da LC 87/96, “as obrigações consideram-se vencidas na data em que termina o período de apuração e são liquidadas por compensação ou mediante pagamento em dinheiro”.
Ainda, na forma dos incisos I a III, do citado art. 24, “as obrigações consideram-se liquidadas por compensação até o montante dos créditos escriturados no mesmo período mais o saldo credor de período ou períodos anteriores, se for o caso”; “se o montante dos débitos do período superar o dos créditos, a diferença será liquidada dentro do prazo fixado pelo Estado”; e “se o montante dos créditos superar os dos débitos, a diferença será transportada para o período seguinte”. Atente-se, aqui, que o art. 24, da LC 87/96, ao tratar dos créditos empregados para abater débitos para não faz menção a expressão “utilizar”, mas “liquidar”.
Na interpretação de Vladimir Passos de Freitas, inclusive vislumbrando inconstitucionalidade na fixação do prazo, o lapso temporal fixado para “utilização” do crédito é afim à escrituração do documento fiscal de entrada, a saber:
“Prazo de escrituração e condições da legislação. Condiciona a lei a prazo de validade dos documentos para permitir o crédito. O direito de crédito do contribuinte é garantia constitucional, de forma que não pode sofrer qualquer restrição da lei complementar ou ordinária.
Extinção do direito de crédito. O direito à escrituração extingue-se em cinco anos. A limitação ofende a mesma garantia constitucional do princípio da não-cumulatividade, que não faz qualquer restrição nem autoriza à norma complementar a extinguir o direito legítimo do adquirente”.
(FREITAS, Vladimir Passos de. Código Tributário Nacional Comentado, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2009, p. 270).
Hugo de Brito Machado faz outra leitura. Para ele, o prazo decadencial previsto no parágrafo único, do art. 23, da LC 87/96, tem como termo de início a (in)ocorrência de operações de saídas, das quais decorram o débito do imposto, já que atrela o exercício do direito ao crédito com a ocorrência de saídas. Confira-se suas conclusões:
(…) de todo modo, ainda que assim não seja, em nenhuma hipótese poder-se-á admitir a decadência de um direito que ainda não se completou, razão pela qual o prazo extintivo instituído pela norma do parágrafo único do art. 23 da LC 87/96 somente tem início da emissão do documento relativo a operação da qual decorre o débito do imposto, a ensejar a compensação com o crédito de cuja extinção se cogita. Se tal compensação, obviamente, não se fizer por inércia do contribuinte.
(MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo, Dialética, 2 ed, 1999, p. 151)
A teor dessa linha de entendimento, o saldo credor do imposto é atingido pela decadência na hipótese de o contribuinte não promover saídas (nenhuma) em “cinco anos contados da data de emissão do documento”.
Melhor explicando, para Hugo De Brito, o prazo de cinco anos a que se refere o citado dispositivo legal não é o do lançamento ou escrituração do documento fiscal (de entrada), mas dos documentos fiscais (de saídas) que ensejariam a compensação. Interessante tese, eis que – de fato – o parágrafo único, do art. 23, da LC 87/96, não faz menção a documento “de entrada”.
A nossa análise caminha no sentido de que a expressão crédito “utilizado”, constante do parágrafo único, do art. 23, da LC 87/96, deve ser lida de forma mais ampla – em consonância com o próprio art. 24, conforme o princípio da não-cumulatividade e a sistemática de apuração do ICMS – ou seja, como crédito “escriturado”, “liquidado” e “transportado” para o período de apuração seguinte. Como consequência, a cada período de apuração com a escrituração das entradas e saídas, com a liquidação do débito e/ou o transporte de eventual saldo para o período de apuração seguinte há a “utilização” do crédito. Nesse contexto, a cada período de apuração, considerando entradas e saídas, mesmo com transferência de saldo credor para o período seguinte, houve a “utilização” na acepção adotada. Os créditos transferidos “não são os mesmos” mantidos no período anterior. Consectariamente, na interpretação do parágrafo único, do art. 23, da LC 87/96, a hipótese lógica que comporta imposição de prazo refere-se à escrituração do documento fiscal de entrada – a apropriação. Não se vislumbra a existência de prazo na legislação de caducidade dos créditos mantidos em conta-gráfica, sequer quando o sujeito passivo entra em período de inatividade, por ausência de previsão legal.
Em recentes manifestações, as Secretarias de Estado das Fazendas de São Paulo e do Paraná posicionaram-se sobre o tema, dando segurança jurídica aos contribuintes.
Na Resposta à Consulta n.º 25.216, de 18.02.2022, a SEFAZ/SP acompanha a interpretação de que o prazo de cinco anos, a que se refere o parágrafo único, do art. 23, da LC 87/96, atine à escrituração do documento fiscal de entrada e o respectivo crédito. A seu turno, entende que não há – na legislação – prazo para “utilização”, de modo que:
“7. Em suma, após o crédito ter sido devidamente escriturado, dentro do prazo decadencial, pode ser utilizado por estabelecimento ativo, nas hipóteses previstas na legislação, a qualquer tempo, ou seja, não há mais que se falar em decadência.
8. Assim, cumpridos os prazos e condições determinados nas citadas normas, o estabelecimento da Consulente faz jus ao crédito regularmente escriturado. A partir daí, não há que se falar em prazo para sua utilização”.
A Resposta à Consulta está assim ementada:
ICMS – CRÉDITO – SALDOS CREDORES APURADOS REGULARMENTE E TRANSPORTADOS MENSALMENTE NA GIA – PRAZO PARA UTILIZAÇÃO – CRÉDITO ACUMULADO.
I. Não há prazo para utilização dos saldos credores regularmente apurados nos livros fiscais próprios, informados e transportados mensalmente nas declarações entregues pelo sujeito passivo.
II. O contribuinte que, comprovadamente, praticar operações em concordância com uma das hipóteses de geração de crédito acumulado relacionadas nos incisos I a III do artigo 71 do RICMS/2000, tem direito à constituição do crédito acumulado. (Resposta à Consulta nº 25216 DE 18/02/2022)
As hipóteses de geração de crédito acumulado, a que se referem a consulta, são relativas à aplicação de alíquotas diversificadas em operações de entrada e de saída de mercadoria ou em serviço tomado ou prestado; operação ou prestação efetuada com redução de base de cálculo quando admitida a manutenção integral do crédito; e operação ou prestação realizada sem o pagamento do imposto nas hipóteses em que seja admitida a manutenção do crédito, tais como isenção ou não incidência, ou, ainda, abrangida pelo regime jurídico da substituição tributária com retenção antecipada do imposto ou do diferimento.
No âmbito da SEFAZ/PR, a matéria foi examinada na Consulta n.º 43/2021, em que há orientação no sentido de que o prazo de lançamento do crédito é de cinco anos da data da entrada, não havendo prazo para efetiva “utilização” (no sentido de dedução ou liquidação com débitos do imposto), desde que o estabelecimento esteja ativo. Transcrevemos:
ICMS. SALDO CREDOR EM CONTA-GRÁFICA. PRAZO PARA A SUA UTILIZAÇÃO. CONDIÇÕES.
(…)
Por outro lado, em se tratando de saldo credor originário de hipóteses que não possibilitam a sua transferência a terceiros ou que não foram objeto de pedido de habilitação no Siscred dentro do prazo de cinco anos da data de aquisição, não há prazo para a sua utilização, desde que o estabelecimento esteja ativo, exercendo atividades sujeitas ao ICMS.
Por fim, registre-se que os extratos da conta gráfica da consulente, apensados à petição, retratam a repetição de mesmo saldo credor, o que sinaliza que não está mais exercendo atividades empresariais, sendo requisito para sua utilização, o exercício de atividades no âmbito do ICMS, e não apenas a manutenção de inscrição ativa no CAD/ICMS. (Consulta SEFA/PR nº 43/2021)
Para finalizar, outro aspecto relacionado à discussão é que não há diferença de tratamento, para fins de determinação de prazo decadencial, para “saldo credor” ou “crédito acumulado”.
Há entendimento de que os “créditos acumulados” de ICMS em função da realização de operações de exportações, se homologados ou reconhecidos nos termos da legislação, não decairiam. De outro lado, aplicando a regra do art. 23, parágrafo único, da LC 87/96, consideram que “saldos credores”, mesmo que homologados em auditoria fiscal, estariam sujeitos à extinção por decurso de prazo.
Não vemos qualquer distinção a justificar a disparidade. A diferenciação entre “saldo credor” e “crédito acumulado”, como visto, está na origem (um derivando de operações de exportação e outro de saídas internas, comumente por conta de saídas ao abrigo de suspensão, diferimento ou outro benefício que não enseje o estorno dos créditos). Ainda que a legislação traga privilégios para “créditos acumulados”, facilitando transferências pelo exportador como forma de fomento, não existe previsão legal que trate da extinção do direito de utilizar o crédito do imposto de maneira diferenciada entre os dois tipos.
Sugerimos, assim, uma análise crítica, sob tais aspectos, às orientações para fins de estorno de “créditos acumulados” e “saldos credores” por suposto decurso de prazo de utilização.