
Dr. Cassiano Antunes Tavares
No último dia 02 de julho entrou em vigor a Lei 14.181, que traz mudanças no Código de Defesa do Consumidor, visando regular o chamado superendividamento. Agora, como direito básico do consumidor, inserido no mesmo rol do direito à vida, saúde e segurança, está assegurada “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservando o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas.”.
Por sua vez, o conceito legal de superendividamento é “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
O primeiro recorte que se deve fazer é que apenas as dívidas das pessoas físicas, decorrentes de relação de consumo estão incluídas nesse conceito. Dentre elas, aquelas decorrentes de operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
Ao consumidor superendividado é possibilitado requerer judicialmente processo de repactuação de dívida, com diversas regras preestabelecidas, referentes à abatimento de encargos e elastecimento de prazos para pagamento, de cunho obrigatório para os fornecedores, conforme a redação da citada lei.
Antes de mais nada, desde que respeitadas as condicionantes legais, deve-se registrar que não se trata de “favorecimento ao calote”, uma vez que exige-se que o consumidor esteja de boa-fé em relação a situação, exclui dívidas contraídas mediante fraude ou má-fé ou com o doloso propósito de inadimplemento ou, ainda, que tenham como objeto produtos ou serviços de luxo e alto valor.
Além do preço em reais, a taxa de juros de mora e a taxa efetiva anual de juros, demais acréscimos, número e periodicidade das prestações, e a soma total a pagar com e sem financiamento, que já eram previstas e foram reforçadas nesta nova lei, foram aos fornecedores de crédito e de venda a prazo o dever de prestar as seguintes informações: i) o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem; ii) a taxa efetiva mensal de juros remuneratórios e os encargos no caso de atraso no pagamento, tais como, juros de mora, multa, etc.; iii) o montante das prestações e a validade da oferta, cujo mínimo deve ser de 2 (dois) dias; o nome e endereço físico e eletrônico do fornecedor; iv) o direito do consumidor ao abatimento proporcional dos encargos no caso de liquidação antecipada do preço, mesmo que parcial.
Cabe frisar que todas essas informações devem ser prestadas ao consumidor de modo, prévio e adequado, já no momento da oferta, e, ainda, clara e resumidamente, no instrumento contratual, na fatura, ou em documento lateral facilmente acessível.
Por sua vez, a par dessas informações, deve ser observado, ainda, o dever do fornecedor em analisar os bancos de proteção ao crédito, a fim de avaliar responsavelmente as condições de crédito do consumidor. Consequentemente, é proibido oferecer crédito sem consulta prévia a esses bancos, tais como SPC e SERASA.
Compõe esse rol de obrigações o de indicar o agente financiador, entregar cópia do contrato aos obrigados pelo crédito.
Em todas essas hipóteses deve ser considerada sempre a idade do consumidor para que se prestem os esclarecimentos sobre as informações pertinentes.
O descumprimento de qualquer desses deveres acima elencados pode acarretar na redução dos juros, encargos e dilação do prazo de pagamento originários, sem prejuízos de indenizações materiais e morais aos consumidores, de acordo com a gravidade da conduta do fornecedor.
É proibido prejudicar a compreensão sobre as implicações da utilização do crédito, bem como não se pode forçar tais contratações, especialmente quando se tratar de idoso, analfabeto, doente, ou de pessoa em estado de vulnerabilidade agravado ou se houver premiação envolvida.
Mais uma inovação é o reconhecimento legal, do que já se via nas decisões judicias, em relação aos chamados contratos conexos. Mais especificamente, quando junto ao contrato principal de fornecimento do produto ou serviço adquirido pelo consumidor ocorre a assinatura de um outro contrato acessório de crédito para o pagamento do contrato principal.
Nessas situações, havendo participação direta do fornecedor, seja na preparação, na conclusão ou se a oferta do crédito se der no local da atividade do fornecedor principal ou no mesmo lugar em que seja celebrado o contrato principal, o exercício do direito de arrependimento pelo consumidor em relação a um dos contratos implica a resolução do outro e, se o fornecedor do contrato principal descumprir suas obrigações, o consumidor poderá requerer a rescisão contra o fornecedor do crédito.
A lei iguala ao fornecedor do crédito, em relação a rescisão que possa ser oposta pelo consumidor, o portador do cheque pós-datado emitido para o pagamento do contrato principal de fornecimento ou contra o administrador ou emitente de cartão de crédito ou similar quando este for fornecido por entidade pertencente ao mesmo grupo econômico do fornecedor principal do produto ou serviço.
Outra novidade na defesa do consumidor em caso de desacerto comercial entre o consumidor e fornecedor de produto ou serviço que envolva crédito é que este não pode buscar recebimento de valores de quantias que tenham sido contestadas pelo consumidor junto à operadora de cartão de crédito ou similar, com antecedência mínima de dez dias contados do vencimento da fatura.
Até aqui, tratou-se da prevenção ao superendividamento, repassando as incumbências trazidas pela modificação do Código Consumerista ao mercado que regula. Além disso, a alteração legislativa trata das situações quando ocorre o superendividamento.
No caso, foi criado procedimento específico para ações judiciais sobre essa matéria prevendo a conciliação e, quando esta não for alcançada, a consequente repactuação da dívida.
O regramento diz que o consumidor superendividado (de boa-fé, sem existência de fraude, etc.) pode requerer ao Judiciário a instauração do processo de repactuação de dívida, visando a realização de audiência de conciliação com todos os credores, oportunidade na qual levará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 05 cinco anos, considerado o seu mínimo existencial e as garantias e formas de pagamento originárias.
O plano de pagamento pode ser composto por medidas facilitadoras do pagamento da dívida, como, por exemplo, dilação de prazos, redução de encargos, etc.
O credor que não comparecer à audiência terá suspensa a exigibilidade do débito respectivo e interrompida a incidência dos encargos da mora, podendo chegar, ainda, ao pagamento posterior aos credores que compareceram.
Os créditos que não foram objeto de conciliação ficarão sujeitos a revisão e repactuação, visando a elaboração de um plano judicial compulsório, que assegurará, no mínimo, o recebimento do valor principal devido, corrigido monetariamente, e parcelado, cujo primeiro pagamento poderá ter carência de até 180 (cento e oitenta dias) da sua homologação e com liquidação total em até 5 (cinco) anos após a quitação do anterior plano consensual.
Pode-se concluir que o legislador tencionou privilegiar a dignidade da pessoa humana, quando assegura como norte ao tratamento do superendividamento o resguardo do mínimo existencial do consumidor. Porém, em contrapartida exige o pagamento de no mínimo o valor originário do crédito usufruído, bem como a abstenção por parte do consumidor de condutas que importem no agravamento do seu superendividamento e a condição de valer-se desse expediente somente 2 (dois) anos após a quitação do plano de pagamento firmado na conciliação.