Filme de Tribunal: “Acusação” (1995).

Thiago Pacheco

Recentemente, completaram-se 30 anos do “Caso Escola Base”, episódio midiático-jurídico de triste memória: acusações falsas de abuso de crianças feitas contra os proprietários de uma escola infantil de bairro, localizada nos arredores do centro de São Paulo, destruíram definitivamente não apenas a pequena escola, mas a vida dos acusados – em grande parte pelo sensacionalismo de órgãos de imprensa e da apuração dos fatos feita de maneira precipitada, embalada por um clima de histeria criado de maneira artificial pelos próprios jornalistas. O tempo absolveu os acusados – mas já era tarde. 

Um caso muito semelhante aconteceu nos EUA, alguns anos antes do escândalo brasileiro: a família McMartin era proprietária de um jardim de infância na cidade de Manhattan Beach, distrito de Los Angeles. A mãe de um dos alunos, recém divorciada do pai da criança, acionou a polícia para informar que o filho havia sido abusado, suspeitando do pai e de um professor da escolinha dos McMartin. A partir daí, uma investigação com semelhantes contornos sensacionalistas e midiáticos é iniciada – e duraria quase 10 anos até que a inocência dos acusados fosse comprovada. 

Em “Acusação”, telefilme produzido pela HBO e lançado em 1995, a história dos McMartin é contada de dentro das salas de julgamento – com o advogado Danny Davis (outra excelente atuação de James Woods como defensor) enfrentando a promotora Lael Rubin (Mercedes Ruehl) ao longo de torturantes audiências, em que crianças são levadas a testemunhar com o apoio de psicólogos forenses e fazem revelações perturbadoras – até que uma fragilidade no método empregado para extrair as narrativas é detectada. 

Com o tempo, as acusações principais vão perdendo força, e a promotoria passa a imputar aos McMartin outros fatos desabonadores, como um meio de tentar dar credibilidade às acusações iniciais. A jornada da família é angustiante, como é a do espectador – e, no fim das contas, como qualquer percurso em busca do restabelecimento da verdade. 

Há, normalmente, certo preconceito contra “telefilmes” – longas-metragens produzidos para o formato específico da televisão, lançados diretamente nesse meio, e com a reputação de serem obras mais simples e, por vezes, toscas. Mas “Acusação” é uma produção da operadora de tv a cabo HBO (responsável por clássicos como “Os Sopranos” e “Band of Brothers), feita com cuidado e que vale ser revisitada, mesmo 30 anos depois, quando ainda se discute ardentemente o poder das mentiras amplificadas pela mídia e pelas redes sociais. 

Waco: a tragédia reconstruída no tribunal.

Thiago Pacheco

O massacre de Waco, como ficou conhecido este terrível episódio, ocupou manchetes e noticiários no começo dos anos 90 – mesmo aqui, no Brasil, tão distante do estado americano do Texas, e em uma época em que a internet ainda nem existia. As imagens de um prédio em chamas, de forças policiais usando veículos blindados, e a notícia de um grande morticínio eram difíceis de ser compreendidas: não se estava enfrentando uma fação criminosa nem um grupo terrorista, mas uma seita conhecida como “Ramo Davidiano”. Seu líder, David Koresh, professava ser um messias sucessor de Jesus Cristo, e criou a comunidade religiosa na localidade texana de Waco. Lá, viviam famílias que veneravam Koresh como um profeta, e aguardavam o iminente apocalipse anunciado por ele. 

Suspeitando que os religiosos estivessem estocando armas ilegais no complexo (chamado pelos residentes de “Monte Carmelo”), o FBI, a ATF (agência de fiscalização de armas de fogo) e a polícia estadual obtêm mandados judiciais para invadir o local, fiscalizá-lo e apreender o armamento eventualmente encontrado. No entanto, os moradores não aceitam o cumprimento da ordem, que entendem como uma agressão à sua liberdade religiosa. O impasse dura dias, e o resultado final é desastroso: a invasão das forças de segurança terminou com a morte de 76 residentes, entre os quais 28 crianças, e a destruição do complexo em um incêndio. Qual a explicação para tão cruento resultado?

Essa explicação é o que a série “O Massacre de Waco: As Consequências” (“Waco: The Aftermath, 2023) pretende apresentar, a partir da reconstituição do julgamento de membros sobreviventes do “Ramo Davidiano”. Disponível no serviço de streaming Amazon Prime, a série é uma espécie de continuação de “Waco”, produzida em 2019 e que retrata diretamente o cerco a Mount Carmel. Por meio de retrospectos feitos enquanto o julgamento dos sobreviventes avança, os advogados de defesa conseguem demonstrar, aos poucos, como as forças de segurança se precipitaram e muito provavelmente deram causa ao desastroso resultado – embora os Davidianos estivessem, sim, bastante bem armados. 

O triste episódio acendeu o debate público sobre as garantias constitucionais dos EUA, como a posse de armas e o direito à liberdade religiosa, e também sobre o abuso de poder pelos agentes de segurança. Com o tempo, cresceu a percepção de que os religiosos estivessem apenas se protegendo de uma agressão injusta e desproporcional, embora a discussão persista até hoje. A recriação do julgamento dos Davidianos revisita esta controvérsia com alguns detalhes que só podem ser conhecidos no processo judicial – mas o veredito final é deixado ao espectador. 

Filme de Tribunal: “O Juiz” (2014).

Thiago Pacheco

Em “O Juiz” (2014), Robert Downey Jr. – que já havia interpretado o estagiário almofadinha de um criminalista aguerrido e cheio de ideais (“Justiça Cega”, 1989) – encarna um advogado bem sucedido chamado Hank Palmer. Especializado em defender clientes poderosos e culpados perante os tribunais de Chicago, Hank está com o casamento em frangalhos e descobre a traição da esposa poucos dias antes de sua mãe falecer. Originário de uma pequena cidade no interior de Indiana, ele parte para o funeral logo após confrontar amargamente a mulher a respeito de suas infidelidades. 

Chegando à pacata cidadezinha de sua infância, Hank aos poucos encontra os irmãos e colegas de escola, e entra em uma jornada nostálgica para aliviar as dores da perda – quando então descobrimos que o advogado é filho do juiz criminal daquela comarca de Carlinville, o durão Joseph Palmer (interpretado magnificamente por Robert Duvall). Um magistrado “moralizador” à moda antiga, Joseph preside as sessões no pequeno fórum local com rigor paternalista e grande experiência. A relação entre ele e Hank, que é filho “do meio”, é estremecida e distante, desde que ele foi exemplarmente punido pelo pai por uma irresponsabilidade em sua adolescência – mas Hank não consegue deixar de admirar Joseph enquanto o observa trabalhar.

Percebendo o declínio físico causado ao pai pela idade e pelas vicissitudes da vida, especialmente a recente viuvez, Hank nota que o velho Cadillac do juiz apresenta sinais de uma recente colisão. Ele pergunta o que aconteceu, mas Joseph afirma não se lembrar de ter batido o carro. Hank imagina que o pai, alcoólatra em remissão, pode ter voltado a beber – e, ainda magoado pelo castigo sofrido na juventude, se despede jurando nunca mais voltar a Carlinville. Antes que ele embarque de volta para Chicago, no entanto, seu irmão mais velho, Glen (Vincent D’onofrio), consegue avisá-lo: Joseph foi indiciado como suspeito de atropelar e matar um jovem – pior, um jovem que ele havia, no passado, julgado. 

É então que tudo muda: Hank vai lançar mão de sua expertise em casos difíceis para defender o pai – e o julgamento do juiz é muito mais que a decisão de um caso criminal, se tornando uma emocionante jornada de redenção, um reencontro de vocações e o renascimento do amor do filho pelo seu pai. 

Quanto vale uma vida?

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

“Valor da Vida” (Worth, 2020) não se passa em tribunais – na verdade, o filme retrata o enorme esforço empreendido por advogados, familiares e companheiros de vítimas do atentado terrorista de 11 de setembro para evitar uma dolorosa ida às cortes.

O advogado e professor universitário Kenneth Feinberg (interpretado magistralmente por Michael Keaton) é escolhido pelo governo americano, logo após o ataque às torres gêmeas, para administrar um fundo de compensação às vítimas do evento. A finalidade do fundo é indenizar os familiares e companheiros das pessoas falecidas no traumático acontecimento – tanto os trabalhadores que estavam no World Trade Center quanto os bombeiros e policiais que morreram tentando salvá-los. O primeiro desafio de Weinberg e sua sócia (também designada para administrar o fundo de compensação) é estabelecer um valor a ser pago para os familiares das vítimas. Qual o critério a ser observado? A família de um zelador que trabalhava no World Trade Center deveria receber o mesmo que os entes queridos de um executivo que ganhava centenas de vezes mais, e assim sustentava sozinho toda a sua família? Como compensar adequadamente cada companheiro, sendo que alguns deles não conseguiam sequer comprovar formalmente os vínculos que os uniam? Como chegar a um critério justo de reparação, diante de situações tão diversas, e expectativas das mais variadas?

Entre as vítimas, há os que não enxergam na reparação monetária algo que possa minimamente “reparar” o que quer que seja – e pessoas que verdadeiramente necessitam da soma para reerguer a própria vida. Há companheiros homossexuais cuja família do falecido se recusa terminantemente a reconhecer a existência da relação. Há líderes e liderados – e desponta no grupo das vítimas a figura de Charles Wolf (Stanley Tucci), que, desde a primeira reunião com os administradores do fundo de reparação, procura ser razoável e apaziguador, mesmo com os ânimos exaltados típicos de semelhante situação. 

Aos poucos, os critérios vão se definindo de maneira mais natural – e Wolf começa a reparar que, mesmo tendo perdido a esposa no atentado terrorista, há algo que é também doloroso na incumbência recebida por Feinberg, especialmente diante da multiplicidade de situações que se apresentam e da necessidade de se obter uma aprovação unânime, entre as vítimas, dos critérios de compensação – do contrário, o assunto só poderá ser resolvido pela via contenciosa. 

“Valor da Vida” toca em temas desconfortáveis e mostra a aparente futilidade das tentativas de se “precificar” a dor humana – no entanto, ao mesmo tempo, como certas circunstâncias, mesmo extremas, podem fazer aflorar nas pessoas a compaixão necessária para amparar o seu semelhante.