Anatomia de uma Queda.

Amanda Botelho de Moraes

A escritora Sandra, Samuel e Daniel, filho deles, poderiam ser uma família comum, em meio a problemas de convivência comuns, não fosse a morte inesperada de Samuel, após uma queda do segundo andar da casa onde moram, em um dia perfeitamente comum, em que Daniel, que tem deficiência visual, encontra o pai já sem vida.

Após as investigações iniciais e na impossibilidade de se definir, à margem de dúvidas, se houve um suicídio ou acidente, Sandra é apontada como a principal suspeita da morte do marido.

A partir daí, o drama da família é examinado fria e profundamente no Tribunal do Júri da França que irá definir se Sandra é culpada ou inocente da morte de seu marido, à medida que sua principal testemunha de defesa, isto é, seu filho, também não tem elementos suficientes para garantir a inocência da mãe.

Conforme o trâmite do julgamento avança, é perceptível que ela não está sendo julgada pelo crime e suas circunstâncias, mas sim por ser quem é, isto é, uma mulher que desafia os padrões de conduta aceitos socialmente e pela influência que sua personalidade teve sobre o marido e suas possíveis decisões.

No duelo entre o advogado de defesa que, por sinal, é um ex-namorado de Sandra, e o promotor, não se trata de investigar os fatos, mas sim a figura da acusada, encenando um verdadeiro show no Tribunal Francês.

Marcado pelo melhor diálogo de 2023, em que Sandra diz verdades ao marido, ao mesmo tempo em que as nuances da relação nos levam a perceber que as queixas dele não são infundadas, o filme nos deixa imersos no cotidiano, nas mágoas e nos pontos positivos de uma relação, com todas as suas ambiguidades.

Dirigido por Justine Triet, “Anatomia de uma Queda” escrutina a vida intima de um casal em crise e nos leva à imediata identificação em maior ou menor grau, ao nos fazer questionar sobre o quanto podemos ser culpados por não satisfazer as expectativas sociais. 

O sol é para todos (1962).

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

“O sol é para todos” (1962) definitivamente não é apenas um grande filme de tribunal. Baseado no romance clássico da literatura norte-americana de mesmo nome (“To Kill a Mockingbird”, no original) escrito por Harper Lee e publicado originalmente em 1960, o longa foi lançado na esteira do grande sucesso do livro – que continua sendo editado ininterruptamente desde seu lançamento.

A trama se passa logo após a grande depressão, e é centrada na família do advogado Atticus Finch, interpretado inesquecivelmente por Gregory Peck. Viúvo, Finch cria os filhos Scout e Jeremy com o auxílio da cozinheira negra Calpurnia, numa imaginária cidade do Alabama chamada Maycomb, uma representação da Monroeville em que cresceu Lee Harper. 

Atticus é advogado e muito bem-quisto por seus concidadãos e vizinhos – até o dia em que aceita ser o defensor dativo de Tom Robinson, um jovem negro acusado de estuprar Mayella Elwell, uma adolescente branca. As tensões raciais que vicejavam no sul dos EUA afloram, com os filhos de Atticus sendo hostilizados pelos colegas de escola e a revolta generalizada dos locais. A instrução do processo, no entanto, não consegue demonstrar a culpa de Robinson, ficando claro que Mayella não foi estuprada, mas espancada por seu pai por demonstrar afeição ao jovem negro. A realidade, no entanto, não consegue influenciar os jurados: mesmo diante da ausência de provas em desfavor do Réu, das evidências de que a vítima mentiu, e da brilhante atuação de Atticus, ele é condenado.

As alegações finais do defensor talvez sejam um dos mais belos libelos de justiça e equidade racial que se possam ver em um filme ambientado em tribunais. A interpretação sóbria de Gregory Peck é muito marcante – ele poderia gritar ou esmurrar a mesa, mas a força do discurso vem de sua convicção moral, coragem e firmeza.

Não se pode dizer que “O sol é para todos” tenha um final feliz. Do resultado injusto das deliberações do júri aos acontecimentos finais, a história deixa um gosto amargo – mas, também, de esperança, na figura especialmente de Scout, a filha mais nova de Atticus, cujas tribulações ao longo da história ecoam o idealismo de seu pai. 

O romance que deu origem ao filme é tido como um dos clássicos modernos da literatura norte-americana, que “todo adulto deveria ler antes de morrer”, conforme uma de suas mais célebres críticas. O mesmo vale para o filme, uma adaptação bastante fiel da comovente história, e um clássico que vai além apenas das salas de julgamento.

A célebre cena das alegações finais:

Filme de tribunal “O Motim do USS Caine”.

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

Como bem sabemos, um processo judicial pode ter um desfecho muito diferente daquele imaginado por seus participantes se os fatos alegados não forem muito bem provados. Conhecida por uma alcunha não muito lisonjeira, a prova testemunhal tem contornos dramáticos e teatrais – e, não sem razão, costuma ser a peça central em recriações cinematográficas de grandes julgamentos. 

É exatamente o caso de “O Motim do USS Caine”, filme originalmente lançado em 1954. Baseado em uma peça de teatro de Herman Wouk – que, por sua vez, é derivada de um romance do mesmo autor – o filme se passa quase inteiramente em uma sala de julgamentos de corte marcial da Marinha dos EUA. Um jovem tenente, Steve Maryk (interpretado originalmente por Van Johnson) é acusado de motim, uma das mais graves violações ao código de conduta dos marinheiros, por liberar de seu comando seu oficial superior, Comandante Phillip Queeg (o taciturno Humphrey Bogart), o qual, durante uma tempestade, teria passado a se comportar de forma errática, comprometendo a segurança do navio e de sua tripulação. Tudo isso acontece, é bom lembrar, durante operações de combate no teatro do pacífico, em plena segunda guerra mundial. 

Maryk sustenta sua inocência no fato de ter salvado o navio ao mudar seu curso, alegando que o Comandante Queeg simplesmente “congelou” diante da forte tempestade, tendo se tornado incapaz de tomar decisões e exercer liderança. Queeg, a seu turno, afirma que seu registro de serviço impecável é prova de que a atitude de Maryk era injustificada. A partir daí, passam a ser ouvidas diversas testemunhas – e a se recriar não apenas os fatos ocorridos na noite da fatídica tempestade, mas também vários outros, anteriores, que demonstrariam um estilo peculiar de comandar adotado pelo comandante Queeg. Seria ele mentalmente são?

Os debates entre acusação e defesa são acalorados: discute-se hierarquia e disciplina, as exigências feitas pela liderança de homens em tempo de guerra e em circunstâncias extremas – e todos os fatos precisam ser reconstruídos a partir do depoimento de homens que, em maior ou menor medida, são influenciados pela subordinação a seus superiores tanto quanto por um estrito código de conduta e honra. 

Um clássico do drama de tribunal, “O Motim do USS Caine” foi refilmado recentemente, e foi o último longa-metragem dirigido por William Friedkin (“O Exorcista”, “Morrer e Viver em Los Angeles”, “Compromisso de Honra”), que faleceu em agosto de 2023. Nesta nova versão, os fatos se passam contemporaneamente, durante uma patrulha do USS Caine no Golfo Pérsico. A tensão e o desfecho surpreendente, no entanto, permanecem – com Friedkin dando um andamento mais ágil que o da versão original, e sem utilizar as recriações dos acontecimentos, mas apenas os depoimentos judiciais para recriar os fatos. É um caso, raro, em que o “remake” faz justiça ao original – cada um deles disponível em diferentes serviços de streaming. 

Filme de tribunal: “Questão de Honra”

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

Em 1992, Tom Cruise já era uma estrela, depois do sucesso retumbante de “Top Gun” e “Nascido em Quatro de Julho”. Em “Questão de Honra”, ele volta a interpretar um integrante da Marinha – mas, desta feita, um oficial temporário do corpo jurídico daquela força.

Na pele do tenente Daniel Kaffee, ele atuará como defensor de dois fuzileiros acusados de assassinar um colega na base militar de Guantánamo, em Cuba. O morto, William Santiago, foi encontrado com sinais de agressão – e descobre-se que, antes disso, ele havia pedido transferência para outra unidade, alegando ter sofrido maus tratos pelos colegas de caserna. A superior de Kaffee, Joanne Galloway (Demi Moore) está convencida de que seus clientes não agiram por contra própria, mas seguiram ordens muito específicas…

O comandante de Guantánamo é o Coronel Nathan R. Jessep (em interpretação antológica de Jack Nicholson), um homem duro, que acredita em disciplina implacável. À medida em que o julgamento prossegue e as testemunhas são ouvidas, descobre-se que em Guantánamo há uma rotina de punições físicas aos soldados que apresentam baixo desempenho ou disciplina ruim. Denominada “código vermelho”, a tradição era conhecida de toda cadeia de comando – que tenta proteger o coronel Jessep durante os depoimentos, até que um de seus subordinados acaba admitindo que ele não apenas sabia da violência cometida contra os soldados por seus colegas, mas a incentivava e ordenava com frequência – e, especificamente, no caso da morte do fuzileiro Santiago.

A partir daí, “Questão de Honra” trata de assuntos como obediência hierárquica, os códigos de conduta não-escritos que imperam na caserna e seus eventuais conflitos com a lei. Os diálogos, inesquecíveis, são de Aaron Sorkin (e o filme, baseado em uma peça teatral de sua autoria) – e culminam no embate entre Kaffee e Jessep, uma das grandes “cenas de tribunal” da história do cinema. Na confrontação, o coronel expõe suas convicções com grande ênfase – e, em uma curiosidade da produção, o diretor Rob Reiner conta que Jack Nicholson repetiu suas falas dezenas de vezes, para que as filmagens de seus colegas na sessão de julgamento pudessem ser feitas de diferentes ângulos, sendo ele o último personagem a ser filmado. Segundo Reiner, todas as performances de Nicholson foram tão boas quanto a que acabou sendo usada no filme, um monólogo que já se tornou clássico.   

“Glória Feita de Sangue”: um clássico da guerra de argumentos

Thiago Cantarin Moretti Pacheco

“Glória Feita de Sangue” (1957) é apenas o quarto filme da longa carreira de Stanley Kubrick. Também co-roteirizado pelo diretor, é baseado no livro homônimo do escritor ítalo-canadense Humphrey Cobb. A história é a de um regimento francês durante a primeira guerra mundial. 

Ordens do generalato mandam a unidade avançar sobre um trecho particularmente perigoso da terra de ninguém. Após tentativas frustradas, com muitos soldados colhidos pelas baterias e metralhadoras inimigas, a tropa, ciente da futilidade do ataque, se recusa a cumprir o comando. Furioso, o General Mireau (George Macready), que havia ordenado a operação, chega a dar ordens para a própria artilharia francesa atacar a posição de seus soldados, de modo a fazê-los avançar. Quando essa ordem não é cumprida, o oficial se recompõe e é convencido por colegas a adotar outra solução: submeter os soldados a uma corte marcial por covardia. O general primeiro deseja que nada menos que cem soldados sejam acusados – mas, como a pena para covardia é o pelotão de fuzilamento, acaba se contentando em acusar apenas três, um escolhido em cada companhia do regimento.

Assim é que, para a defesa dos soldados acusados, se voluntaria o Coronel Dax (Kirk Douglas), o próprio comandante do regimento em questão e que era advogado na vida civil. Tocado pela responsabilidade por seus homens, e ciente de que, em última análise, a recusa ao ataque suicida seria atribuída a ele (sem falar na pena a ser aplicada aos soldados), Dax se dedica apaixonadamente a defender seus comandados.

O julgamento, no entanto, é um jogo de cartas marcadas – nem toda a habilidade de Dax consegue salvar os pobres recrutas, que acabam fuzilados após o desrespeito a todas as regras e garantias que deveriam ser observadas, mesmo em uma corte marcial. No fim das contas, fica um gosto amargo e a constatação de que não apenas ataques suicidas são um morticínio fútil, mas a guerra como um todo – ponto de vista, é claro, que viria a ser vigorosamente questionado pela próxima guerra mundial. A contraposição entre essas duas realidades – a da guerra ora como um conflito evitável e produto de mera degeneração da política; ora como atividade necessária diante de circunstâncias extraordinárias – é representada pelo próprio embate entre a pretensão punitiva do General Mireau e a defesa do Coronel Dax. Dessa síntese, espera-se, algo de melhor pode surgir.