Por Isadora Boroni Valério

A advogada Isadora Boroni Valerio atua no setor societário do Prolik.
Todo início de ano milhares de brasileiros distraem-se na frente da televisão com o reality show destinado a mostrar a convivência de participantes que aceitam ser vigiados 24 horas por dia em uma casa cenográfica, sem qualquer conexão com o mundo exterior. Observados o tempo todo por centenas de câmeras espalhadas pela casa, não há nada que passe despercebido.
Talvez o único momento de intimidade conferido aos participantes sejam os poucos minutos dentro das cabines onde se encontram os vasos sanitários. Provavelmente porque esses instantes não sejam dos mais instagramáveis, twitáveis ou comerciais.
A experiência, já reproduzida no Brasil 19 vezes, foi inspirada na trama de George Orwell, 1984. No livro, a sociedade futurística governada de forma despótica pelo Big Brother também é vigiada e manipulada por telas e câmeras de vigilância.
Se na trama de Orwell, escrita em 1948, vigiar a população através de televisores era ideia do futuro, em 2019 ela é mais do que presente.
Diariamente compartilhamos nossas informações com centenas de milhares de pessoas através dos mecanismos de acesso ao mundo virtual. Já acostumados a estarmos sempre online, somos hipnotizados pela facilidade de realizar transações bancárias, compra de produtos e serviços, cadastro em lojas, sites de notícia, dentre outros, com alguns cliques.
Escancaramos todos os dados que nos identificam, muitas vezes involuntariamente, para que sejam coletados, classificados, analisados, reproduzidos, distribuídos, armazenados, transferidos e utilizados sem que saibamos onde, como, por quem e para qual finalidade. Nossos celulares nos escutam, nossos computadores sabem qual produto estamos desejando.
As informações relacionadas às pessoas físicas capazes de identificá-las (nome, endereço, fotos, dados de documentos, bancários e até o número de identificação do computador) são dados pessoais. E, ainda que isoladamente não permitam a identificação do seu titular, se forem combinados com outras informações, revelam quem somos.
No Brasil, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014, regulamentada pelo Decreto nº 8.771/2016) trouxe disposições complementares à Constituição Federal com o objetivo de ampliar os mecanismos de proteção dos direitos fundamentais da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, CF/88), e assegurar que a proteção destes direitos ocorra, também, na internet e na utilização das ferramentas trazidas pela era digital.
A lei tratou de exigir o consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, bem como exigir que a coleta, uso, armazenamento e tratamento destes dados possuam finalidade específica e sejam justificáveis.
Em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018) conferiu às pessoas físicas o direito de informação e decisão sobre o uso e divulgação dos dados que lhe são atinentes. A LGPD passou a reunir o que antes era encontrado em legislações esparsas e realçou outro aspecto da evolução digital da última década: já não somos mais senhores das nossas próprias informações. Já não temos mais controle sobre o que compartilhamos.
As informações pessoais que fornecemos a um provedor de conexão ou a determinados aplicadores passaram a ser repassadas e utilizadas sem o consentimento de seus proprietários, para definir padrões de comportamento e orientar as estratégias empresariais das corporações. Os novos “donos” destes dados são capazes de estimar quanto ganhamos, quanto gastamos, o que queremos comprar, quais são nossos objetivos e até mesmo se em algum momento nosso padrão de consumo nos trará dificuldades financeiras.
Daí a importância da regulação do tratamento destes dados, da obtenção do consentimento dos titulares, em meio escrito ou outro que demonstre a sua efetiva vontade, e do tratamento atender a uma finalidade específica.
Mais recentemente, no apagar das luzes do ano de 2018, a Medida Provisória nº 869/2018, publicada em 28 de dezembro, tratou de criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, órgão da Administração Pública Federal, integrante da Presidência da República, a quem será assegurada a autonomia técnica necessária para exercer as suas funções sem interferências políticas. A MP também aumentou o prazo de vacatio legis da LGPD, e suas disposições entrarão em vigor não mais em fevereiro de 2020, mas em agosto, conferindo às empresas mais tempo para se adequarem às novas regras.
À ANPD competirá, dentre mais de uma dezena de atribuições, criar normas e procedimentos para a proteção de dados, requerer informações de agentes de tratamento de dados e aplicar sanções (advertências, multas, bloqueios, eliminação de dados, entre outros), mas de forma a também manter o equilíbrio entre a proteção e o desenvolvimento econômico.
Embora haja apreensão quanto à autonomia da estruturação administrativa e atuação do órgão vinculado à Presidência, que não possuirá orçamento, acredita-se que a Autoridade será fundamental na efetividade da aplicação da LGPD e dos mecanismos de proteção de dados no Brasil.
Mas até que ponto todas as regras de proteção de dados e relativas ao seu processamento deveriam preocupar apenas empresas e entidades envolvidas na sua utilização?
A par do que são considerados dados pessoais fornecidos aos provedores e aplicadores e da destinação por eles conferidas a estes dados, muito ainda é entregue diariamente pelos próprios usuários, sem qualquer reflexão, em publicações no ambiente digital.
Compartilhamos informações de pessoas desconhecidas, fotos de quem nem conhecemos, notícias falsas, comentários maldosos, julgamentos que poluem a internet, alarmam a população, criam mitos e prestam um enorme desserviço a gerações que, de maneira geral, estão a cada dia mais superficiais.
Decisões são tomadas a partir da interpretação de meia dúzia de palavras. Contexto? Isso já é coisa do passado. Não se busca conhecer a fonte da informação, os seus detalhes, autores e muito menos quem serão os destinatários, porque ninguém tem tempo e paciência para ler mais do que três linhas, para esperar mais do que cinco segundos o carregamento de uma página, de um arquivo, de informação.
Boa parte da população sequer tem acesso à educação, que dirá à internet, à tecnologia e as suas particularidades. Mas aprender, ainda que de forma sintética, como os mecanismos da web funcionam, como as tecnologias vêm sendo aplicadas, quais direitos e responsabilidades detemos, o que estamos compartilhando e se de fato temos consciência do que estamos compartilhando, é imprescindível, ainda que nem todos o façam ou tenham condições de fazê-lo.
Faz parte desta reflexão, inclusive, entender que a ignorância é a maior aliada da enxurrada de violações à privacidade, e que o tratamento dos dados não é assunto apenas para grandes corporações, empresários, autoridades e órgãos reguladores.