
João Fernando Miranda
A Portaria MF nº 1.430/2025, de 04 de julho de 2025, estabelece a substituição do índice de correção monetária aplicado aos depósitos judiciais e administrativos em processos que envolvam a União, suas autarquias, fundações, fundos e empresas estatais dependentes. A norma, que entra em vigor em 1º de janeiro de 2026, afasta a metodologia até então baseada na Taxa Selic e passa a adotar o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) como índice de atualização. Os depósitos realizados antes da vigência da Portaria permanecerão sujeitos à atualização pela Taxa Selic, mesmo que ainda não tenham sido levantados, conforme dispõe o artigo 10.
A alteração pode impactar diretamente a estratégia processual de empresas em litígios fiscais, tornando as modalidades de garantia por seguro e fiança bancária mais atrativas em comparação ao depósito judicial.
A mudança decorre do art. 38 da Lei nº 14.973/2024, que estabeleceu novas diretrizes para a cobrança da dívida ativa da União e regulamentou o uso de depósitos judiciais. A Portaria detalha o procedimento de repasse dos valores à Conta Única do Tesouro Nacional e prevê que, quando autorizado o levantamento em favor do contribuinte, a correção será realizada uma única vez, com base na variação acumulada do IPCA, apurada pelo IBGE.
Atualmente, os depósitos são corrigidos pela Taxa Selic, fixada em 15% ao ano. A partir de 1º de janeiro de 2026, com a substituição pelo IPCA, cuja taxa acumulada nos últimos 12 meses é de 5,32%, os valores passarão a ser atualizados por esse índice. A alteração tende a reduzir a atratividade econômica do depósito judicial, já que o rendimento será, em regra, menor.
Nesse cenário, a nova sistemática reacende o debate sobre a isonomia entre Fisco e contribuinte. Isso porque, enquanto a União continua exigindo débitos tributários atualizados pela Selic, que engloba correção monetária e juros reais, ao contribuinte caberá apenas a reposição inflacionária medida pelo IPCA.
Essa assimetria pode configurar violação ao princípio constitucional da igualdade, especialmente sob a ótica da equidade na relação tributária entre Fisco e contribuinte, ensejando nova rodada de judicialização sobre o tema.
Um precedente relevante é o julgamento da ADI 1.933, no qual o STF reconheceu a constitucionalidade do repasse dos depósitos judiciais ao Tesouro Nacional. Na ocasião, a Corte entendeu que não havia confisco nem violação ao direito de propriedade, em parte porque havia paridade na correção dos valores: aplicava-se a Selic tanto nos casos em que a União era vencedora quanto nos casos em que era vencida. Com a nova portaria, esse pressuposto de simetria deixa de existir.
A substituição da Selic pelo IPCA também reacende discussões quanto à tributação da correção monetária incidente sobre os valores levantados ao final do processo. O Supremo já enfrentou a matéria no Tema 1.243, que discutia a incidência do IRPJ e da CSLL sobre valores relativos à Selic auferidos no levantamento de depósitos judiciais. Na ocasião, decidiu-se pela inexistência de repercussão geral.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tema 1.237 fixou o entendimento de que os valores de juros, calculados pela Selic ou por outros índices, recebidos em razão da repetição de indébito tributário, da devolução de depósitos judiciais ou de pagamentos decorrentes de obrigações contratuais em atraso, integram o conceito de receita bruta e, por isso, compõem a base de cálculo do PIS/Pasep e da Cofins, tanto no regime cumulativo quanto no não cumulativo. Além disso, no Tema 504, o STJ concluiu que os juros incidentes sobre a devolução dos depósitos judiciais possuem natureza remuneratória e estão sujeitos à tributação pelo IRPJ e pela CSLL.
Apesar desses precedentes, a ADI 7.813, protocolada em maio de 2025 pela Confederação Nacional de Saúde (CNS), reabriu a discussão. Nela, o STF deverá analisar a constitucionalidade da tributação sobre os valores devolvidos ao contribuinte, considerando a natureza da Selic.
Com a nova correção pelo IPCA, o debate sobre a tributação dos valores devolvidos ao final do processo pode ganhar novos contornos. Enquanto a Selic, por sua composição híbrida de juros reais e correção monetária, suscitava controvérsias quanto à incidência do IRPJ e da CSLL, a adoção do IPCA, índice estritamente inflacionário, pode reforçar argumentos contrários à tributação, especialmente sob a ótica da ausência de acréscimo patrimonial efetivo. Trata-se de um novo cenário que tende a reconfigurar a discussão jurídica em torno da natureza desses valores e sua eventual sujeição ao regime tributário.
Embora a Portaria introduza uma nova sistemática de correção baseada no IPCA, há exceção que permanece em vigor e limita seu alcance. Em especial, as regras não se aplicam a depósitos vinculados ao pagamento de precatórios ou requisições de pequeno valor.
Por fim, a Portaria também estabelece que, nos casos de conversão do depósito em renda da União, isto é, quando o contribuinte perde a ação e os valores são transferidos ao Tesouro, a correção monetária torna-se irrelevante para fins de complementação do valor. Nesses casos, o depósito é considerado como pagamento efetuado na data do recolhimento, afastando discussões sobre eventual diferença entre os índices aplicáveis.