Impactos da decisão do STF (ADI 5635) quanto a fundos vinculados à concessão de benefícios fiscais

Michelle Heloise Akel

Em outubro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 5635, ajuizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em que se discutiu a (in)constitucionalidade das Leis nº 7.428/2016 e 8.645/2019, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF) e o Fundo Orçamentário Temporário (FOT), e por arrastamento a inconstitucionalidade do Convênio ICMS nº 42/2016.

Rememore-se que tais dispositivos legais condicionavam a fruição de benefício ou incentivo fiscal, já concedido ou que vier a ser concedido, a depósito aos aludidos fundos de montante equivalente a percentual incidente sobre o benefício, nos termos do Convênio ICMS 42/2016.

A CNI sustentou a inconstitucionalidade da exigência – cujo não recolhimento culminaria na perda definitiva dos respectivos benefícios e incentivos fiscais ou financeiros – nos seguintes fundamentos: (a) caracterização dos fundos como um novo imposto (diverso do ICMS), instituído em afronta à Constituição Federal; (b) que a imposição do depósito aos Fundos representaria aumento da carga tributária no mesmo exercício financeiro, ofendendo a anterioridade; (c)  afronta ao art. 167, IV, da CF/1988, eis que haveria vinculação de receita de ICMS ao Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF) e/ou Fundo Orçamentário Temporário (FOT); (d) afronta à segurança jurídica no que se refere aos benefícios fiscais condicionados, uma vez que a legislação fluminense contemplou a obrigatoriedade de depósito aos Fundos em hipóteses de benefícios já concedidos, produzindo efeitos retroativos; e (e) ofensa à proporcionalidade.

Por maioria, os Ministros da Suprema Corte entenderam que tanto o FEEF quanto o FOT são constitucionais, com a fixação da tese nos seguintes moldes: “São constitucionais as Leis nºs 7.428/2016 e 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF e, posteriormente, o Fundo Orçamentário Temporário – FOT, fundos atípicos cujas receitas não estão vinculadas a um programa governamental específico e detalhado”.

Como o voto vencedor proferido pelo Ministro Luís Roberto Barroso teve algumas ressalvas e, considerando que outros Estados, a teor do Convênio ICMS nº 42/2016, igualmente, condicionam a fruição de incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais ou financeiros, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração, à obrigatoriedade de depósito em fundo de equilíbrio fiscal, a depender dos contornos dos casos concretos e de cada legislação estadual, a constitucionalidade das exigências dos recolhimentos aos Fundos pode ser levada ao Poder Judiciário.

Importante, assim, ainda que de forma breve, trazer os pontos de interesse definidos pelo julgamento da ADI 5635.

Pois bem, quanto à natureza jurídica dos depósitos destinados aos fundos estaduais, prevaleceu o entendimento quanto à natureza jurídica de ICMS. A seu turno, diante dessa natureza, no que pertine à arguição de vedação à afetação da receita de impostos, concluiu-se que o FEEF e o FOT são fundos atípicos, que não constituem unidades orçamentárias, haja vista que não se destinam a programações específicas e detalhadas. Ressaltou-se, nesse particular, que “por cautela, afasta-se qualquer exegese que vincule as receitas vertidas ao FEEF/FOT a um programa governamental específico, sob pena de violação ao art. 167, IV, da CF/1988”. O próprio voto vencedor pontua, nesse quesito, que “intimada a esclarecer sobre a classificação financeira orçamentária dos recursos destinados ao FEEF/FOT, a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro informou que tais fundos não estão ligados a uma unidade orçamentária (UO) ou a uma unidade gestora (UG) e que, a despeito de exibirem a nomenclatura de ‘fundos’, são, em verdade, fontes de recursos sem destinação de receita específica”.

Trata-se de um aspecto importante. Isso porque, algumas legislações estaduais, instituíram fundos com destinação financeira específica; situação em que – potencialmente – poderia se estar diante de hipótese de inconstitucionalidade por afronta ao art. 167, IV, da CF/1988. Atente-se, todavia, que o art. 167, IV, da CF/1988 veda a destinação da receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, salvo no caso de os recursos serem empregados para ações e serviços públicos de saúde, manutenção ou

desenvolvimento do ensino, dentre outras hipóteses.

O exame dos contornos e das características legais de cada fundo estadual, assim, deve ser realizada particularmente.

Por exemplo, no caso do Estado do Paraná, a Lei Complementar do Estado do Paraná nº 231/2020, institui o Fundo de Recuperação e Estabilização Fiscal do Paraná (FUNREP), com o fim de atenuar os efeitos decorrentes de recessões econômicas ou desequilíbrios fiscais e de prover recursos para situações de calamidade pública no Estado do Paraná. Contudo, em dezembro de 2023, o FUNREP foi revogado pela Lei nº 21.850/2023, nunca tendo sido cobrado após prorrogações sucessivas.

Ainda em referência ao Paraná, relativamente aos depósitos para fundo específico, a ser recolhido como contrapartida aos benefícios concedidos no âmbito do programa Paraná Competitivo, é necessário aprofundar a análise quanto a fundo em si a que será destinado. Por exemplo, se o depósito for para o Fundo de Capital de Risco do Estado do Paraná – FCR/PR, vinculado à Secretaria de Estado da Fazenda – SEFA/PR, criado pela Lei Estadual nº 19.479/2018, e regulamentado pelo Decreto Estadual nº 11.460/2018, com a finalidade de aportar recursos em empresas e fundos de investimento, em uma análise perfunctório, há afronta ao art. 167, IV, da CF/1988, sendo passível de discussão judicial.

No caso de Santa Catarina, a seu turno, alguns benefícios fiscais estão atrelados ao recolhimento do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior, o qual se insere na exceção à vedação contida no inc. IV, do art. 167, da CF. Sua cobrança está de acordo, portanto, sob esse prisma, com a decisão proferida pelo STF.

No que aduz aos argumentos quanto à afronta a segurança jurídica,  nas hipóteses de benefícios fiscais condicionados, atingindo casos pretéritos, o voto vencedor, expressamente, pontua a impossibilidade da redução dos incentivos fiscais concedidos por prazo determinado e de forma condicionada, ressalvando que essa matéria deve ser analisada em via autônoma e própria, pois depende da verificação de cada incentivo fiscal.

O voto vencedor ressalta, igualmente, que pela própria natureza tributária reconhecida dos depósitos aos Fundos (caracterizando-se como ICMS), deve ser preservada a não cumulatividade. Com isso, impõe-se “interpretação conforme a Constituição para garantir a não cumulatividade, sem prejuízo de análises particulares dos benefícios fiscais para impedir o aproveitamento indevido dos créditos e que a análise do direito ao aproveitamento desses créditos”.

Vale comentar, por fim, que a desvinculação dos recolhimentos de tais fundos da rubrica de imposto (ICMS), tal como ocorre inclusive quanto aos Fundos de Combate à Pobreza, tem um efeito prejudicial particularmente aos municípios que veem a parcela a receber quanto ao Fundo de Participação dos Municípios esvaziada.  Há diversos precedentes, assegurando aos municípios o recalculo de sua parcela no Fundo de Participação dos Municípios, concernentemente aos valores recolhidos aos fundos, devendo respeitar a natureza das parcelas de ICMS constitucionalmente asseguradas.

A decisão proferida está assim ementada:

“Direito Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Fundos destinados ao equilíbrio fiscal. FEEF e FOT. Redução de benefícios fiscais de ICMS. Vedação à vinculação da receita de impostos. Não cumulatividade.

1. Ação direta de inconstitucionalidade originalmente proposta contra os arts. 2º, 4º, caput e inciso I, e 5º, da Lei nº 7.428/2016, do Estado do Rio de Janeiro, que dispunham sobre a destinação de recursos ao Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF. Petição inicial aditada para impugnar os arts. 2º, 3º, caput e inciso I, 5º e 8º da Lei nº 8.645/2019, também do Estado do Rio de Janeiro, que revogou aquele primeiro diploma e instituiu o Fundo Orçamentário Temporário – FOT. Pedido de declaração de inconstitucionalidade, por arrastamento, do Convênio ICMS nº 42/2016 e dos Decretos estaduais nºs 45.810/2016, 45.973/2017 e 47.057/2020.

2. Questão preliminar: não ocorrência de perda de objeto. A atual disciplina do tema não consubstancia efetiva modificação em relação à exigência e à apuração do depósito na sistemática anterior. Mantêm-se inalterados os fundamentos constitucionais empregados para impugnar a validade da legislação estadual atual. A parte autora formulou, oportunamente, pedido de aditamento à petição inicial.

3. Natureza jurídica dos depósitos destinados aos fundos estaduais. Redução transitória no importe de 10% de benefícios fiscais já usufruídos pelo contribuinte, em prol da formação de fundo voltado ao equilíbrio fiscal do Estado do Rio de Janeiro. Medida emergencial e temporária, pensada em razão da notória crise fiscal suportada pelo ente federativo. A figura tributária criada pela Lei nº 7.428/2016 e mantida pela Lei nº 8.645/2019 tem a natureza jurídica de ICMS.

4. Vedação à afetação da receita de impostos. A Lei estadual nº 7.428/2016 criou o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF, que se destina ao equilíbrio fiscal do Estado. Com o advento da Lei estadual nº 8.645/2019, tal fundo foi substituído pelo Fundo Orçamentário Temporário – FOT, com a mesma natureza e finalidade. O FEEF e o FOT são fundos atípicos, que não constituem unidades orçamentárias, haja vista não se destinarem a programações específicas e detalhadas. Por cautela, afasta-se qualquer exegese que vincule as receitas vertidas ao FEEF/FOT a um programa governamental específico, sob pena de violação ao art. 167, IV, da CF/1988.

5. Anterioridade tributária. Decisão proferida na Representação de Inconstitucionalidade nº 0083082-60.2019.8.19.0000, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, suspendeu a eficácia do art. 10, I, da Lei estadual nº 8.645/2019, de maneira que as normas em tela entraram em vigor apenas noventa dias contados da sua publicação. Prejudicada a discussão sobre o tema.

6. Direito adquirido a benefício fiscal. Acolher a premissa da revogação indevida de benefício fiscal requer verificar, em cada caso concreto, o atendimento aos requisitos necessários à fruição do favor fiscal, providência inviável em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade. Eventual hipótese de supressão indevida de benefício fiscal deverá ser solucionada em via própria, com base em legislação infraconstitucional.

7. Proporcionalidade. A medida é (i) adequada para a promoção do equilíbrio fiscal do Estado do Rio de Janeiro; (ii) necessária, por se valer de uma redução parcial e temporária dos benefícios fiscais concedidos ao contribuinte, no importe mínimo recomendado pelo Convênio ICMS nº 42/2016; (iii) proporcional em sentido estrito, tendo em vista que as vantagens geradas para o equilíbrio fiscal do Estado superam o custo individual de cada contribuinte.

8. Não cumulatividade. A metodologia de apuração do depósito não afasta a natureza jurídica do ICMS nem inviabiliza que se mensurem os respectivos créditos. Interpretação conforme a Constituição para garantir a não cumulatividade, sem prejuízo de análises particulares dos benefícios fiscais para impedir o aproveitamento indevido dos créditos. Aplicam-se aos depósitos em questão as regras próprias do ICMS.

9. Procedência parcial dos pedidos, para conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 2º da Lei nº 7.428/2016 e ao art. 2º da Lei nº 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, de modo a (i) afastar qualquer exegese que vincule as receitas vertidas ao FEEF/FOT a um programa governamental específico; e (ii) garantir a não cumulatividade do ICMS relativo ao depósito instituído, sem prejuízo da vedação ao aproveitamento indevido dos créditos.

10. Fixação da seguinte tese: “São constitucionais as Leis nºs 7.428/2016 e 8.645/2019, ambas do Estado do Rio de Janeiro, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal – FEEF e, posteriormente, o Fundo Orçamentário Temporário – FOT, fundos atípicos cujas receitas não estão vinculadas a um programa governamental específico e detalhado”.

(ADI 5635, Relator(a): LUÍS ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 18-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 23-11-2023  PUBLIC 24-11-2023)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.