O estatuto da pessoa com deficiência e a interdição

POR Robson José Evangelista

Robson José Evangelista.

Robson José Evangelista.

As pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir validamente sua vontade, estão sujeitas a serem interditadas judicialmente, ou seja, deixam de ter plena autonomia para a prática de atos da vida civil e livre administração de seus bens. Para cuidar dos interesses da pessoa interdita, o juiz nomeará um curador, via de regra, um familiar.

Com a edição do Estatuto da Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), instaurou-se certa perplexidade quanto à real natureza e extensão do instituto da interdição. Alguns, com certo exagero, chegam até mesmo a afirmar que a interdição, nos moldes até então conhecidos, deixou de existir, dando lugar a um novo modelo que tem como gênese o supremo interesse individual da pessoa portadora de deficiência.

É que o referido diploma legal alterou o Código Civil no trato da matéria, inclusive atribuindo legitimidade apenas ao próprio interditando e ao Ministério Público para requererem a interdição. Outros legitimados (parentes) somente poderiam tomar a iniciativa em casos de urgência.

Mas, por óbvio, tal novo regramento não pode ser analisado isoladamente. Parece indiscutível que o legislador cometeu uma imprecisão técnica ao mandar excluir, do rol dos legitimados a requerer a interdição, os ascendentes e os descendentes.

Em verdade, a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência teve como fonte maior de inspiração a dignidade da pessoa humana, valorizada ao seu extremo. Busca, o Estatuto, atribuir como premissas maior a igualdade de tratamento e de consideração social à pessoa com impedimento de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Dentro desse cenário de elogiável intenção, o legislador contemplou uma espécie de presunção quase absoluta de capacidade de todas as pessoas portadoras de deficiência, prevendo que apenas em situações excepcionalíssimas será decretada a interdição como medida protetiva, a qual deve ser proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso e durará o menor tempo possível.

A par dessa excepcionalidade, o Estatuto determina que a curatela deve se restringir, como princípio maior a ser obedecido, aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

É uma nova concepção que precisa ser bem compreendida e assimilada pela sociedade, sempre lembrando que o Estatuto, a exemplo de outros diplomas legais que buscam superar as desigualdades sociais, tem como norte o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana.

Então, ainda que o legislador possa ter cometido imprecisão quando restringiu a legitimidade ativa para manejar o pedido de interdição, cabe ao intérprete relativizar tal regra, para o efeito de admitir que outras pessoas também possam tomar a iniciativa de requerer a interdição, inclusive porque muitas pessoas portadoras de deficiência intelectual não têm a mínima capacidade de se expressar.

Aliás, o Código de Processo Civil atualmente vigente, estabelece, nos seus artigos 747, que o cônjuge ou companheiro, bem como outros parentes do interditando, têm legitimidade para tomar tal iniciativa. Há, portanto, necessidade de harmonizarmos a legislação, concluindo que o legitimado por excelência para iniciar o processo de interdição é o próprio interessado, mas, supletivamente, os seus parentes e o Ministério Público podem fazê-lo em situações excepcionais.

De outro modo, o Estatuto introduziu a figura da “tomada de decisão apoiada”, processo judicial por meio do qual a pessoa com deficiência e que goza de discernimento suficiente elege pelo menos duas outras pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozam de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhe os elementos e informações necessários para que possa exercer sua plena capacidade.

Diante da nova ordem conceitual que o Estatuto da Pessoa como Deficiência introduziu, voltado a estimular uma mentalidade de maior compreensão e consideração com as pessoas que sofrem lamentável tratamento desigual em nossa sociedade, assume papel de fundamental importância o Poder Judiciário, na medida em que, quando provocado a examinar pedidos de interdição ou de tomada de decisão apoiada, deverá cercar-se de abalizado subsídio médico e psicológico para definir com precisão os reais limites das restrições impostas à plena capacidade da pessoa portadora de deficiência.