Notas sobre a instituição da e-financeira

Por Nádia Rúbia Biscaia

Dra. Nádia é advogada do Departamento Tributário.

Dra. Nádia é advogada do Departamento Tributário.

A Receita Federal do Brasil, por meio da Instrução Normativa 1.571, de julho de 2015, instituiu a e-Financeira, nova obrigação acessória que impõe às instituições financeiras o repasse de informações relativas às operações/movimentações financeiras realizadas por seus utilizadores, pessoas físicas ou jurídicas, situadas ou estabelecidas no âmbito do território brasileiro.

Integrante do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) – que além de incluir dados relativos às aplicações financeiras, seguros e planos de previdência privada, passou a incorporar as informações apresentadas por meio da Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira (DIMOF) –, a e-Financeira apresenta uma nova dimensão de fiscalização: a concentração do Estado na diminuição do volume de informações recebidas dos contribuintes, visando a alcançar, tão somente, aquelas de maior relevância econômico-tributária.

Exemplo disso é o aumento do limite mensal mínimo do valor de movimentações a serem reportadas à Fazenda Nacional. Agora, apenas aquelas acima de R$ 2 mil reais mensais passam a ter a obrigatoriedade no repasse. No âmbito da então DIMOF todas as transações mensais acima de R$ 833 reais já eram submetidas à obrigatoriedade perante o Fisco.

Estão entre as informações que deverão ser informadas pelas entidades previstas no art. 4º na normativa saldos relativos ao último dia útil do ano de:

a) qualquer conta de depósito, inclusive de poupança, considerando quaisquer movimentações;

b) de cada aplicação financeira, bem como os correspondentes somatórios mensais a crédito e a débito; ou no dia de encerramento;

c) provisões matemáticas de benefícios a conceder referente a cada plano de benefício de previdência complementar ou a cada plano de seguros de pessoas, discriminando, mês a mês, o total das respectivas movimentações;

d) de cada Fapi, e as correspondentes movimentações, discriminadas mês a mês, a crédito e a débito; bem como

e) rendimentos brutos, acumulados anualmente, mês a mês, por aplicações financeiras no decorrer do ano, individualizados por tipo de rendimento.

Apesar da acuidade com que o tema de sigilo fiscal e bancário tem sido tratado pelo Estado (1), o desconforto perante os contribuintes é caso antigo. O questionamento quanto à constitucionalidade das ações estatais tem registro desde a instituição da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), há muito extinta, até a inauguração da DIMOF.

Ponto central da discussão, a possibilidade de a Receita Federal obter acesso às informações financeiras dos contribuintes, sem a devida autorização judicial, assim como previsto pela Lei Complementar 105/2001, foi recentemente declarada como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

O raciocínio é claro: o Poder Público não escapa dos parâmetros constitucionais previstos para a devida conformação da ordem jurídica, principalmente quando observada a existência de requisitos objetivos para a sua atuação.

Significa dizer, portanto, que a constitucionalidade da medida reside no fato de que, uma vez apurada eventual ilegalidade pelos dados financeiros coletados, apenas com a abertura formal de fiscalização, e posterior instauração de Processo Administrativo Fiscal, o contribuinte poderá sofrer a imputação de tipo legal aplicável.

Logo, havendo o respeito da Administração Tributária pelo procedimento administrativo, e essa mantendo os dados circulando apenas em seu âmbito, isto é, sem tornar público, não há, de fato, em que se falar em quebra de sigilo e eventual inconstitucionalidade da fiscalização.

Outro ponto importante a se verificar é que as informações relativas às movimentações de capitais já eram, por força da Lei nº 9.613, de 1998 (responsável por dispor dos crime de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores), reportadas ao Estado através do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), pelas pessoas físicas e jurídicas que, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, tenham exercício junto ao mercado financeiro e de capitais.

De mais a mais, cumpre observar que a nova obrigação acessória se trata de um projeto que põe em trânsito a viabilização da troca automática de informações com os Estados Unidos (EUA), por meio do programa Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), e com os demais países signatários da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária (“Acordo Multilateral”), pelo programa Common Reporting Standards (CRS).

Nessa linha, ressalte-se que o Brasil ratificou no último mês de agosto, por meio do Decreto nº 8.506/2016, a cooperação intergovernamental (IGA) com os Estados Unidos para a implementação do FATCA (2). E, da mesma forma, sendo signatário do Acordo Multilateral, procedeu à ratificação dos termos em junho do presente ano por meio do Decreto n º 8.842/2016.

Em um contexto mais aprofundado, o novo padrão mundial de fiscalização, ao qual o Brasil começa a se submeter, teve início em 2009 com a ampliação do Fórum de Transparência fiscal, inaugurado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para os países não-membros. Hoje, o órgão contempla 132 países e 15 organizações internacionais observadoras.

Dentre os avanços proporcionados pela cooperação internacional, temos, em primeiro lugar, o peer review, em que os países submetem suas legislações à revisão de outros e recebem sugestões de melhorias visando a transparência fiscal. Em segundo lugar, e ponto de principal importância, temos a troca automática de informações entre nações, realidade inovadora voltada à repressão de práticas como a evasão fiscal e que estará em pleno funcionamento em 2017.

Logo, por conta da nova obrigatoriedade imposta às instituições financeiras, e, principalmente, em razão do novo padrão de fiscalização que está sendo consolidado mundialmente através dos foros internacionais – movimento entendido por “globalização dos fiscos” –, certamente haverá um aumento das obrigações impostas às pessoas físicas e jurídicas com vistas a combater os males da globalização, entre eles, a sonegação fiscal e o planejamento tributário abusivo, que causam a redução da arrecadação do país (evasão).

Diferentemente do que é sustentado país afora, não obstante haja a desconfiança por grande parte das pessoas físicas e jurídicas, certamente pela insegurança jurídica que assombra os entraves administrativos e judicias, a presente análise se propõe, justamente, a demonstrar o outro lado da moeda: o cenário tributário globalizado e a crescente necessidade de alcançar meios que vedem a utilização de caminhos transversos para evitar a tributação.

A e-Financeira, apesar da invasividade na vida dos contribuintes, constitui medida constitucional inaugurada pelo Estado brasileiro que visa a proteger os preceitos da Carta Maior e a garantia da ordem econômica.

Com a inteligência e globalização fiscal, por certo, não há mais espaço para a omissão, inexatidão ou incorreção de dados perante a Fazenda. Portanto, é de reiterar a necessidade de conscientização da importância, pelos contribuintes (pessoa física ou jurídica), do devido cumprimento das obrigações principais e acessórias e, pelo Fisco, da observância ao devido processo e aos princípios que regem os procedimentos administrativos.

Estaremos, ante essas considerações, caminhando para a justiça fiscal? Esperamos que sim.

(1) Inclusive quando nos deparamos com o parágrafo 11 do art. 5º da referida IN, que prevê a vedação da “inserção de qualquer elemento que permita identificar a origem ou o destino dos recursos utilizados nas operações financeiras (…)”.

(2) O FATCA é um programa exclusivo dos EUA, que não é signatário do Acordo Multilateral.